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Para além de tinta e tela

Atualizado: 23 de jun. de 2023

O tema do sofrimento psíquico ganhou corpo em nossa sociedade, seja pelo signo de doenças mentais, transtornos mentais ou qualquer outra denominação. Isso por conta do crescente mal-estar promovido pelo avanço de um estilo de vida tipicamente moderno. Por conta disso, sempre surge interesse no tema em diversos locais, desde mesa de bar até sala de aula, geralmente pautados nas questões da pessoa que na ocasião propõe o tema. E dentro dessas discussões, sempre vejo a questão dos neurotransmissores ou disfunção química surgir como discurso dominante dentro do senso comum sobre o tema, um discurso que define de forma unilateral a questão. E nesse tipo de debate eu sempre lembro de uma frase da Psicanalista e Historiadora Elizabeth Roudinesco, que falava algo mais ou menos assim: "Tente pintar um quadro de Picasso apenas manipulando os neurotransmissores." Sim, não é possível, pois entre o social e o biológico, existe uma outra dimensão que aparentemente está sendo deixada de lado no discurso em questão: a psicológica.


Primeiro, é necessário entender o nosso atual contexto. Muitos pesquisadores de diversas áreas falam sobre um mal-estar social promovido por um estilo de vida de consumo extremo numa sociedade acelerada pela tecnologia. Mas o que ocorre é uma espécie de apropriação do tema pela ideologia vigente. Assim, a verdade que é passada sobre o tema está de acordo com a proposição mercadológica ligado ao consumo de medicamentos. O sofrimento mental se tornou na nossa sociedade uma grande fatia de mercado, e tal procedimento se faz dentro de uma lógica que privilegia a questão biológica (neurotransmissores, neurociência, desequilíbrio químico, etc.) diante outros fatores. Não à toa vemos não só a prevalência desse tipo de pensamento quando o assunto surge nas "mesas dos bares", mas também como uma incompreensão dos demais fatores (psicológicos e sociais) dentro do tema. Afinal, é assim que uma ideologia funciona: traz uma versão da verdade escondendo as outras, para que certo funcionamento/pensamento se torne majoritário e incida no comportamento das pessoas. Pensando exatamente nessa não compreensão desta dimensão psicológica é que pretendo escrever algumas reflexões sobre o tema.



Nas Faculdades de Psicologia, principalmente no tema do desenvolvimento humano, definimos o sujeito como um ser biopsicossocial. Tal definição pedagógica serve para tentarmos compreender o funcionamento dessa dimensão complexa da subjetividade. Isso porque dizer tal termo não significa simplesmente apontar três aspectos na vida de um sujeito, mas entender como tais dimensões são compreendidas de forma dialética. Basicamente, não existe sujeito sem nenhuma dessas dimensões, e ambas não se separam entre si dentro deste sujeito: elas se interligam e se influenciam mutuamente e simultaneamente. Desta forma, para se entender a dimensão psíquica, é fundamental entender que ela não existe sem o biológico e o social. Isso porque, de certa forma, não existe psiquismo fora do sujeito. A subjetividade seria essa dimensão que não pode ser simplesmente reproduzida com controle químico, como na proposta de Roudinesco. Ela seria uma outra dimensão, como uma "camada", por onde o sujeito se relacionaria consigo mesmo e com o mundo.


Para entender melhor essa história, vou pegar um exemplo daquilo que ocorre nesse exato momento comigo: fome. A fome é um sentimento que se origina de sinais enviados por neurotransmissores localizados no nosso estomago, falando de forma resumida. Através de um sistema de informações sobre a ausência de alimento no nosso organismo (não me aprofundarei nessa questão, pois não é o objetivo aqui), nosso cérebro recebe informações que nos moverá em direção a busca de alimentos. Porém não qualquer alimento, mas aqueles que se adequam ao nosso organismo, através do sistema sensorial (cheio, gosto, cor, etc.). O que ocorre quando tais sinais chegam ao nosso cérebro não é uma ordem direta de "busque comida". Há toda uma interpretação de tais informações, utilizando diversas capacidades cognitivas que possuímos e nos moverão para certas ações. Assim, ao invés de simplesmente correr atrás da comida, pensarei que pelo fato de ainda não ser o horário convencionado para o almoço, e por saber que haverá seguramente uma oferta de comida, eu simplesmente esperarei. Mais do que isso, pela minha subjetividade, ainda farei da escrita desse texto uma prioridade ante a necessidade de se alimentar. Mais do que isso, eu criarei expectativas sobre o que me alimentar. "Umm, ontem eu comi frango com arroz, hoje vou querer massa." Não se trata apenas de "se alimentar", mas de uma preferência sobre o que se alimentar.


Um exemplo simples, mas que mostra essa dimensão psíquica se relacionando com o biológico e o social. Em psicologia, aprendemos que a percepção é uma capacidade interpretativa dos sentidos que nos chega. Ou seja, estímulos nos surgem e damos um sentido a ele de acordo com nossa subjetividade. No caso da fome, quando aquela dor aperta a barriga, vem a mente a imagem e o cheiro de uma comida que desejamos. Cada um terá uma imagem em cheiro específico, próprio dele. Essa é a dimensão subjetiva. Quer dizer, você pode através da manipulação química promover ou diminuir a fome, como muitos medicamentos fazem. Mas a satisfação, o desejo do que comer, isso tem outra dimensão. E ai entramos na relação entre o psíquico e o social. Afinal, enquanto aqui por nossas terras o arros e feijão é sagrado, na Europa não pode faltar batata. Afinal, só existimos e sobrevivemos por sermos seres de cultura: seres que se relacionam e produzem conteúdo e material simbólico como consequência dessa relação. No exemplo, o "horário de almoço" convencional é algo definido socialmente. Para exemplificar isso, pense nas diferenças de cada região, de cada função social, de cada forma de relação que se incide a isso. Quando trabalhava numa empresa, meu horário convencional era as 11 h. Aqui em casa, atualmente é em torno das 12 h. Porém, no Rio de Janeiro, aos finais de semana passa a ser por volta das 14 h ou mais. Se perceberem bem, depois de um tempo nosso corpo se "acostuma" com certos horários de comida, mandando mensagens para nós quando passamos do tempo em que ele já esperava que a comida estivesse ali.


Voltando a questão da saúde mental, lembro de uma pesquisa feita sobre o efeito dos antidepressivos no cérebro. Isso porque, muitos casos de depressão é encontrada certos padrões de alteração no funcionamento em sistemas diversos. Nessa pesquisa, foi observado que muitas vezes tai funcionamento havia sido alterado exatamente pela utilização dos medicamento. Não se está aqui dizendo que eram os medicamentos que produziram a depressão, e sim que a relação entre "mente e cérebro" não é unilateral, quer dizer, não é só a química que altera o humor, o contrário também é válido, como nos mostram as pesquisas feitas com praticantes de meditação. Ou seja, por mais que é valido dizer que modificações no funcionamento neurológico pode provocar sofrimento psíquico, as "formas de se sofrer" são únicas, e ao mesmo tempo compartilhadas socialmente. Únicas porque elas se colocaram ao sujeito através da sua subjetividade. Socialmente compartilhada pois, como é observado na clínica, todo sofrimento ganha forma através dos discursos. Histórias que abarcam esse sentimento angustiante que nos toma. Do contrário, esse sofrimento se torna "sem nome", indefinido e extremamente angustiante. Por isso acabamos buscando discursos reconhecidos socialmente. Por mais que acreditemos que nossas histórias sejam inéditas, elas não só estão inscritas socialmente mas como tem origem nessa dimensão. Veja aquilo que falei sobre a ideologia e o papel neurológico do sofrimento: este é um exemplo claro de como os discursos são socialmente adquiridos. As pessoas não simplesmente descobriram que sua depressão é causada por um desequilíbrio neural ou pesquisaram sobre o tema, mas adquiriram para si tal discurso socialmente. Ou seja, pegaram um discurso sobre o seu sofrimento e trouxeram para si, levando aquilo que é do social para o subjetivo.




O que vemos nestes exemplo é que existe sim uma dimensão fundamental no corpo, no somático; e que esse corpo reage e interage socialmente com os demais seres e a cultura. Mas se você juntar simplesmente cultura e neurotransmissores não é possível fazer surgir um Picasso. Essa unicidade está nesta outra camada, chamada subjetividade, campo do psicológico que insere de forma indissiocrática a dimensão do sujeito. Dimensão essa que se produz através de um corpo presente num campo social, mas que é capaz de alterar tanto o corpo como a sociedade. No caso da minha abordagem, é através das histéricas que a Psicanálise se funda. E essas (majoritariamente) mulheres nos trazem o exemplo de tudo o que foi falado aqui: mulheres que inscreviam no corpo suas condições sociais. E tudo isso através da dimensão psicológica. Tirar tal dimensão do discurso sobre o sofrimento mental, que é o que ocorre ideologicamente na nossa sociedade, significa basicamente tirar o sujeito de cena e todo o saber que se produz através dele. É transformar a Guérnica (1937) apenas em tinta e tela, mais uma entre tantas outras.


Para um aprofundamento maior no tema das formas de sofrimento e sua ligação com o social, recomento o livro do Professor Cristhian Dunker chamado "Mal Estar, Sofrimento e Sintomas: Uma psicopatologia do Brasil entre muros". Vale cada página. Um abraço a todos.

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