A Psicanálise de Sigmund Freud possui um papel fundamental no pensamento contemporâneo. E se eu puder apontar o principal elemento deste valor seria exatamente na dimensão do impossível. Como muitos já sabem, a psicanálise se fundamenta em um conceito principal: o Inconsciente. E este surge exatamente por conta dessa dimensão do impossível.
FREUD E O IMPOSSÍVEL
Em 1900, Freud publica sua obra prima: A Intepretação dos Sonhos. Tal livro de destaca por muitos fatores. Não só por nos informar que os sonhos possuem um significado latente de possível interpretação, ou de que este sonho possui um funcionamento específico que nos leva aos fundamentos do funcionamento mental inconsciente, mas há algo ali que é basal para a constituição de toda uma nova perspectiva interpretativa.
Diante dessa nova descoberta feita pelo médico austríaco, havia um limite para a interpretação proposta. Existia um ponto ao qual seus pacientes (e ele mesmo) chegava na interpretação de seus sonhos e que era impossível ir adiante. Freud chamou isso de "o umbigo do sonho", um ponto nodal do qual se encontrava um impossível de ser interpretado. Este impossível diz respeito exatamente a dimensão inconsciente. Isso porque, entre tantas características, o inconsciente é aquilo que é do campo do impossível de ser alcançado. Temos as formações do inconsciente, que são os sintomas, chiste, atos falhos e sonho, através do qual nos é permitem trabalhar com este conteúdo inconsciente.
A FALTA CONSTITUINTE
Tal impossível, ou podemos dizer, tal falta de sentido, falta de explicação, ou simplesmente falta, é um ponto crucial na compreensão da formação da psique para a Psicanálise. Este negativo não é só um elemento, mas algo constituinte. O sujeito da psicanálise se constitui na relação com sua divisão. Divisão essa que nos leva a dúvida, a incerteza (no caso das neuroses), produzida também por uma ameaça, chamada de castração. Esta seria uma ameaça a esta criança, de que algo que ela possui e gosta muito, pode ser tirada ou já foi previamente tirada. Freud observa que isto se relacionaria ao pênis, pois a criança estaria numa fase onde o interesse na diferenciação sexual seria uma das principais atividades.
Tal ameaça surge quando a criança dentro de uma relação em que tudo pode lida com uma experiência de um Não que o insere dentro de uma nova relação: uma em que há um outro par além de si mesmo. Um outro que deseja, que se diferencia e que impõe impossibilidades para este sujeito. A criança vai entrar na cultura através desta relação com este Não.
SUFICIENTEMENTE BOM
Diante a compreensão de que esta falta estrutura o sujeito, conforme definiu Lacan sobre as saídas do Complexo de Édipo através do perigo da castração (neurose, psicose e perversão), muitos podem questionar o que fazer para que o sofrimento da criança possa ser contornado, se há uma forma em que ela possa crescer e se tornar um adulto o mais saudável possível. Mais do que saudável, um sujeito de sucesso, capaz de conquistar tudo e a todos. Existe algum receituário, alguma fórmula ou indicações aos cuidadores desta criança de como tratar de forma correta os filhos para que eles se tornem "saudáveis" e não "neuróticos", "psicóticos" ou "perversos", com seu sofrimento oriundo desta formação?
"Proteger com rigor a criança é de pouca valia, devido à impotência dessa proteção em relação ao fator constitucional. Além disso, essa proteção é mais difícil de se por em prática do que imaginam os educadores e traz consigo dois novos perigos que não podem ser subestimados: o de que ela seja demasiadamente bem-sucedida, isto é, de que favoreça uma repressão exagerada e danosa para o ulterior desenvolvimento da criança; e o de que torne a criança indefesa ante a esperada investida das demandas sexuais da puberdade."
diz Freud na conferência de número 23, intitulada "Os caminhos da formação de sintomas", dentro das conferências introdutórias de 1917. Podemos pensar que há um impossível no processo educacional, assim como há um impossível na própria clinica psicanalista. Há algo que é incontornável. Talvez, o melhor que os pais e cuidadores podem fazer em relação ao seus filhos é exatamente dar o espaço suficiente para que a criança possa lidar com esta falta.
Winnicott, psicanalista Inglês, usa uma expressão muito sugestiva sobre o papel da mãe na criação da criança: a mãe suficientemente boa. Ou seja, ser uma mãe totalmente boa talvez esteja exatamente no campo deste impossível. Mais do que isso, a tentativa do totalmente boa seria também uma tentativa de cobrir este impossível, fundamental para a própria formação do sujeito. Além de ser impossível esta cobertura, um efeito seria dificultar o encontro desta criança com este impossível. Se a falta é constituinte, então é impossível cobri-la. O que se faz ao encher a criança de presentes e respondendo a todas exigências dela, ou seja, tentando buscar tapar o buraco desta falta, é prejudicar a criança nesta relação com a falta. O Não exerce uma função faltante. Não é que ele funda a falta, mas coloca cada sujeito em relação com esta falta que o constitui.
(Na imagem acima, Winnicott atuando com crianças)
O QUE PODEM OS PAIS EM RELAÇÃO A CRIANÇA
Assim, se me perguntarem o que de melhor os pais ou cuidadores podem fazer em relação aos seus filhos, eu pegaria um conceito trazido por Foucault nos seus últimos textos: o cuidado de si. Assim, se a criança se forma na relação entre ela e seus cuidadores, cada cuidador possui uma influência fundamental para esta criança. E nisso estamos falando tanto de caraterísticas conscientes, mas principalmente das inconscientes. O melhor que os cuidadores podem fazer para esta criança é o cuidado de si. Pois ao fazerem isto, não estão só melhorando a qualidade de suas vidas, mas também do próprio laço afetivo criado entre ela e a criança. Laço este que é a base fundamental da formação da criança como sujeito, em seu trajeto de lidar com esta falta.
A criação de uma criança não diz respeito apenas a forma como esta criança irá se tornar sujeito, mas também a como ambos os envolvidos se transformam dentro deste processo. Processo este fundamental para a nossa sociedade. Uma criança não diz respeito só a ela, mas aos cuidadores que serão afetados por esta relação. O próprio desejo destes cuidadores estará presente nesta relação, mas a forma como isto ocorre faz toda a diferença para ambos. Ver que não foi capaz de aproveitar todo o processo junto com seus filhos produz muito sofrimento para todos, pois diz respeito a saúde desta relação. Ou seja, não se trata da criança ser um objeto do desejo dos cuidadores, ou o contrário, mas de se construir uma relação onde possa emergir um sujeito, da forma como ele surgir.
Se cada criança acaba por ser o efeito desta relação, pois é através dela que ela se insere na cultura, e com isso em tudo que mais importa, o melhor que cada cuidador pode fazer é cuidar de si. Muitos podem ser os caminhos escolhidos. O que posso recomendar, por conta da minha própria experiência, é o caminho da terapia. Afinal, fazer terapia não diz respeito apenas ao sujeito que vai para a clínica, mas a todos que o cercam, sejam aqueles mais próximos, como familiares e colegas, como da própria sociedade em que este sujeito está inserido. E isso não seria diferente em relação aos pais.
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