Atualmente, é muito comum que as pessoas chegarem na clínica ou com um diagnóstico sobre si ou pedindo para que o terapeuta dê um diagnóstico sobre sua condição. Palavras do vocabulário psicopatológico se tornaram parte do cotidiano. TDAH, TOC, bipolaridade, Burnout, depressão, ansiedade, síndrome do pânico, etc. são alguns exemplos dessas palavras que estão na boca das pessoas. Estas saíram dos manuais de saúde mental e invadiram as revistas, jornais, sites, blogs, etc. Mais do que as palavras diagnósticas, junto com elas toda uma série de características que não definem um tipo de sofrimento, mas a própria pessoa.
SERES QUE FALAM, SERES QUE SÃO FALADOS
Talvez o elemento que mais nos definam é o fato de sermos seres que falam. Falamos com palavras ditas e escritas, com nossos gestos, com nosso silêncio, com o nosso olhar. Mas sempre falamos para um "outro", um interlocutor que, estando na sua frente ou não, sempre estará presente de alguma forma. Assim, somos o que somos porque falamos e também por que somos falados. Pare e pensa no bebê. Ao nascer, a criança já busca formas de comunicação, seja com um choro, um olhar, um gesto. Mas isso não é o suficiente. Aos poucos, os pais e cuidadores vão "decifrando" esta criança, que nesse processo, vai aprendendo a falar. Quando a criança tem um certo tipo de choro, descobrimos que o que ela sente é fome. Para a criança, o que sente passa a ser fome porque alguém dá nome a esse choro. Assim, no nosso desenvolvimento, somos falados pelos outros. Pare e pense no seu nome próprio. Você se reconhece ao ser chamado. Mas esse nome passou a ser seu no momento que os outros passam a te chamar por ele. Nós nos definimos, primeiramente por aquilo que falam de nós.
Não somos somente seres que são falados, mas sim que falam. Pegamos por exemplo as culturas que tem como base de sua tradição a oralidade. Ali produz-se um saber através de uma tradição em que uma pessoa fala algo para outra. Não é uma pura repetição de uma história, mas uma nova versão daquilo que foi escutado, versão criada no momento que se fala para outro. Ao contar a história do seus ancestrais, aquela população não está retratando fielmente os fatos, ela contando a sua versão do que lhe foi passado. A cada passagem de história, um pouco do contador é deixado pelo caminho, pois a história é recontada. A própria clínica tem como base, entre outras coisas, a forma como recontamos a nossa própria história, criando-a novamente no momento que falamos.
NARRATIVAS DE SOFRIMENTO
Assim, entendemos que somos seres que falamos e somos falados. Quando nos sentimos mal sobre algo, sempre procuramos alguém para falar sobre o que passamos ou que fale sobre isso, seja uma pessoa que está ali na sua frente, ou uma que interagimos na nossa imaginação. Nós narramos o nosso sofrimento, ou buscamos narrativas para eles. Vivemos tempos que por conta de inúmeras características, como as relações de trabalho, o uso de tecnologia, os conflitos geracionais, a desigualdade social, a insegurança, etc. produz muitos tipos novos de mal estar. Por mal estar quero dizer aquele sentimento de desconforto, insatisfação, tristeza, etc. que não conseguimos nomear. Sofremos por algo, mas não sabemos muito bem o que é.
Quer dizer, passamos a nos sentir mal de formas distintas, das quais procuramos palavras ou narrativas para dar conta disso. Diante da falta de palavra para esses sentimentos, encontramos um catálogo de termos técnicos. Ou seja, cada vez mais deixamos de falarmos sobre nosso sofrimento para sermos falados pelos diagnósticos psicopatológicos. Alguns exemplo: nossa atenção difusa por conta do uso excessivo das novas tecnologias passa a ser TDAH; nossa tristeza e desesperança pelas mudanças sociais, depressão; o excesso de sofrimento que nos paralisa pelas relações trabalhistas, Burnout. E assim, nos fechamos em diagnósticos que falam sobre nós e que definem o que somos, o que sentimos, por que sentimos e o que precisamos fazer com isso.
Não há problema em si na utilização do diagnóstico. Eles servem como indicativos de um tratamento a ser seguido. São termos técnicos usados por um saber do tratamento psicológico, seja feito por médico ou psicólogo. Mas o diagnóstico em si, por conta da sociedade em que vivemos, possui uma armadilha. Ao invés de ser o ponto de início do tratamento, ele passa a ser o fim. O diagnóstico passa aos poucos a se tornar, cada vez mais, a totalidade daquele sujeito. Ele não sente mais tristeza, angústia, felicidade, apreensão, insegurança, desconforto, medo. Ao invés disso, ele possui síndromes, transtornos, déficites, mal, etc. O resultado disso é a eliminação exatamente do que tais sentimentos produzem, que são os conflitos inerentes a existência. Tais conflitos que nos moldam como sujeito, que desde o nascimento até a nossa morte vão ser os desafios afetivos que enfrentaremos, e nesse enfrentamento nos tornamos o que somos, some do horizonte. No lugar da insegurança deste conflito, a certeza diagnóstica.
A RELAÇÃO COM A LINGUAGEM
A relação que temos com nossa linguagem não é dada. Ela se transforma a todo instante, pois somos inseridos nela, ou seja, estamos a usando ela a todo momento. A forma como utilizamos ela também nos treina em sua utilização. Quer dizer, quanto mais narramos nossas histórias, melhor nos tornamos nisso. Sabe quando uma pessoa decide ser escritora e falam para ela ler muitos livros? É por ai. O que acontece quando paramos de nós mesmos falar ao invés de sermos falados? Isso mesmo, desaprendemos como que faz. Nossas narrativas se tornam mais precárias. E assim, passamos a adotar cada vez mais as narrativas que nos são fornecidas.
Aquilo que sentimos, aquilo que somos, os nossos sonhos e objetivos, o que queremos e o que procuramos evitar: ao invés de construirmos tais elementos pelas nossas narrativas, passamos a consumir as histórias que nos são oferecidas. Deixamos, cada vez mais de sermos seres que falam para nos tornamos, cada dia mais, seres que são falados. As consequências disso é que, no final, tais narrativas que tomamos emprestado não dão conta daquilo que sentimos, por um fator simples: elas não são nossas. Elas são insuficientes para lidarmos com o nosso sofrimento. Sem saber produzir nossas narrativas, a única coisa que podemos fazer é consumir novas narrativas colocadas para nós, e continuar sofrendo e consumindo novas narrativas.
Defender a psicoterapia na forma como faço significa defender a retomada dessa capacidade. É defender que cada um reaprenda a serem pessoas que falam mais do que são falados, que assumam seus desejos, seus sentimentos, suas responsabilidades, ou seja, sua própria história. É uma luta difícil, mas possível, principalmente quando auxiliado pelas técnicas desenvolvidas dentro da psicoterapia.
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