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Meu medo de altura e a psicanálise

Desde que me lembre, eu tenho medo de altura. É só eu estar num local alto que rapidamente me dá tonturas, um desequilíbrio que me faz buscar algo para me segurar ou me afastar no local que me causa este desconforto. Este medo de altura nunca foi uma questão para mim, mas apareceu na minha terapia de uma forma interessante. Gostaria de utilizar este exemplo pessoal para discutir como cada forma de sofrimento é única, e como abordamos esse elemento na psicanálise.


O medo de altura aparece na minha análise através de alguns sonhos: sonhos que estou flutuando, e que preciso me segurar em algo para não acabar indo para o céu sem que consiga voltar. É um sonho repetido, que tenho desde criança. Essa relação entre o sonho e o medo de altura veio na análise através de uma palavra. Percebi que, nos sonhos, meu medo se dava com a possibilidade de não ter onde me segurar, e com isso flutuar sem controle para o espaço. Este "me segurar" me fez lembrar do medo de altura. Isso porque o medo de altura ocorre quando estou em algum local alto do qual não possuo nenhum "apoio" para me segurar. Percebi que tanto no sonho quanto no medo de altura, o "apoio" possuía uma importância significativa.


Minha atuação como terapeuta e como paciente se faz através da psicanálise. Nela, a aposta está nas palavras. Ou seja, é no falar (e também no calar) que a terapia se desenvolve. Quando estudamos psicodiagnóstico, uma área de estudos dos sofrimentos psíquicos que serve de apoio para as diversas psicoterapias, encontramos dois elementos dentro da organização dos transtornos e adoecimentos mentais: uma dimensão geral, que diz respeito a elementos comuns encontrado em todos os quadros de uma certa enfermidade; uma dimensão específica, que diz respeito apenas àquele caso. A psicanálise vai lidar, de forma radical, com aquilo que é específico. Assim, os signos que nos chegam através das palavras são importantes não pelo seu sentido geral, mas por aquele que cada um produz. Quer dizer, no meu caso, a palavra "apoio" vai ter um significado específico para meu caso.


O que surge como medo de altura é um sintoma. Para a psicanálise, o sintoma é o resultado de um conflito interno por conta de exigências distintas, e sua solução é um "acordo" entre as partes: se uma parte sua deseja ter algum tipo de satisfação e outra parte condena esta ação, o resultado desse conflito é o surgimento do sintoma. Desta forma, o sintoma sempre nos indica algo para além dele. Assim, ao escutar um sintoma como o meu medo de altura, entendemos muito mais como algo que uma pista de algo do que necessariamente um problema a ser resolvido. O que está por trás deste sintoma? Isso é algo a ser tratado através da análise.

Foto de Ave Calvar na Unsplash

No meu caso específico, o sintoma (medo de altura) se junta ao sonho (medo de flutuar) através da palavra "apoio". Jacques Lacan, psicanalista francês, nos fala que o inconsciente se estrutura como linguagem. Isso quer dizer que devemos pensar ele assim como pensamos o funcionamento da linguagem. Mas ao contrário do que pensamos normalmente em termos de linguagem, Lacan nos indica que devemos, na clínica psicanalítica, prestar atenção não aos significados, mas aos significantes. Significante seria, nesse caso, a palavra "apoio". O importante aqui de compreende é que um significante possui qualquer significado. Gosto de usar o exemplo da palavra "manga", que pode significar diversas coisas: parte da camisa, fruta, uma gíria, revista em quadrinhos japonesa, etc. Assim, o significante abre espaço para uma cadeia de significados. Não entrarei aqui numa discussão teórica profunda sobre a proposta de Lacan. Só cito para dizer que esta palavra "apoio" serviu como ponto de "apoio" para a minha análise.


Logo percebi que tal sintoma de medo de altura se ligava a outros sintomas mais antigos, relacionados a ideia de apoio. Por trás dos sintomas sempre há a fantasia do qual ele recobre. E o caminho da clínica se dá, segundo Lacan, através da "travessia da fantasia". O que isso quer dizer? Vamos falar antes sobre a Fantasia. Ao analisar suas pacientes histéricas, Sigmund Freud percebeu que existia em seus relatos histórias que não condiziam com a verdade sobre o passado dos pacientes, mas que surgiam como verdade para eles. Ele chamou de fantasias inconsciente. Essas fantasias serviam para encobrir o trauma inerente a existência humana. Assim, esta fantasia surge como um elemento fundamental para a organização desta vida psíquica. A importância da fantasia em nossa vida psíquica é tal que ela é considerada a própria verdade psíquica. E além disso, os sintomas surgem como indicação dessas fantasias.


Assim, ao surgir no sonho diversas vezes a questão do flutuar, que surge também no meu medo de altura, através da clínica, cheguei na relação entre a minha fantasia, ligada a uma lógica afetiva relacionada com a palavra apoio. Ou seja, o sintoma não é um inimigo da análise. Ele provoca sofrimento sim, mas também nos indica um caminho de cura. O caminho que uniu estas referencias foi exatamente a palavra apoio. "Tenho medo de altura pois me falta um apoio nesta situação".

Foto de Edurne Tx na Unsplash

O fato de eu ser um terapeuta faz com que a palavra apoio também ganhe outro significado. Nosso processo de formação é contínuo, e passa pela nossa análise pessoal. Algo que é fundamental no tratamento é o manejo da transferência por parte do terapeuta. Para mim, dentro da relação entre teoria, prática e clínica pessoa, interpretei a minha transferência com meu terapeuta como um "apoio" que possibilitasse eu entrar em contato com esta fantasia. Apesar do medo de altura não ser uma questão para mim, ele aparece na clínica, meio que "sem querer", para apontar aquilo que, acredito, sempre quis tratar. E ai está o ponto de apoio do terapeuta: é necessário respeitar o tempo de nossos pacientes. Nosso trabalho é ajudar cada paciente a ter as condições necessárias para ter acesso a estes elementos, e as vezes, da um "empurrãozinho" neles nesta direção.


No meu caso, apesar de ser um ponto fundamental, levei anos até chegar nele. Algumas pessoas levam dias, outras semanas. E muitas levam anos para falar. E mais do que isso, não se fala tudo numa mesma sessão. Estes elementos se mostram conectados. As vezes, aquilo que você fala no início da sessão só faz sentido no meio ou no fim. As vezes, apenas em sessões posteriores. Na maior parte do tempo, essas conexões se fazem fora da sessão. Meu medo de altura, apesar de causar desconforto, não era uma questão, pois não é um impeditivo na minha vida. Mesmo tendo contato com todos estes elementos associados a este medo de altura, não quer dizer que deixarei de ter medo. A forma como interpretei isso é que estes sintomas relacionados ao medo de altura são marcas da minha história. Marcas que estarão lá, e tudo bem. Sinto que o medo de altura já cumpriu sua missão.


O que nos move em direção à clínica são muitos fatores diversos. E a forma de abordar estes elementos muda de abordagem para abordagem. Dentro da clínica psicanalítica, da qual faço parte e posso falar, a aposta está na linguagem, naquilo que falamos e deixamos de falar. Muitos outros elementos estão associados a este relato, que não aprofundarei para não deixar o texto mais longo do que já é. Mas espero ter dado, através de uma experiência pessoal uma mostra do funcionamento da análise nas nossas vidas. Leva tempo, da trabalho, mas produz efeitos significativos na nossa qualidade de vida.

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Invitado
16 sept 2024
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Excelente relato!

Obrigada por compartilhar.

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