Afirmo sem medo que o autor que mais li na vida foi Freud, sendo alguns textos de forma extremamente repetitiva. Não que eu seja um leitor compulsivo de inúmeras obras, mas que o estudo da Psicanálise ao qual me debruço exige essa leitura insistente e repetitiva. E dentro dessa prática, percebei uma característica importante nos textos de Freud - eles são fáceis de ler e difíceis de compreender.
A LEITURA E O INCOSCIENTE
Acredito que isso se deve a uma característica própria do texto de Freud - a ambiguidade. Isso porque dentro da proposta da psicanálise criada por Freud, o ponto central é o inconsciente. Mais do que um conceito dentro de um arcabouço teórico, o inconsciente define o paradigma teórico da psicanálise. Entender esse inconsciente é entender a psicanálise, e a psicanálise se posta a compreensão desse inconsciente. Ele é ao mesmo tempo conceito, fundamento e motor de toda a teoria. Isso porque ele implica novas relações com toda a dimensão de produção de saber, de sujeito, de realidade.
Teoria se confunde com sua própria prática. Assim, quando falo desta ambiguidade, estou remetendo aos conceitos de "conteúdo manifesto e latente" numa fala, fundamental para o processo de interpretação na clínica. A escrita de Freud é como uma fala, que possui discursos distintos, e para se entender, se utiliza a própria teoria que ela produz. Ou seja, o ponto inicial para a compreensão da psicanálise e dos textos de Freud é realizar uma mudança paradigmática. O paradigma cartesiano, focado na racionalidade e na lógica (consciência) não é suficiente para essa atividade, pois manteria o leitor preso no seu "conteúdo manifesto". Sem esse olhar para os diversos "latentes", cria-se uma armadilhas desta ambiguidade de seu texto, que é ler apenas a superfície com a sensação de profundidade.
Essa ambiguidade se faz nas diversas camadas pela qual Freud se expressa. O estilo de Freud, muito influenciado pela literatura, promovendo uma leitura agradável. Ao contrário de muitos outros teóricos, Freud é reconhecido por escreve bem. Mas do que isso, não tem a pretensão de produzir textos rebuscados. Ele se utiliza de muitas palavras e expressões corriqueiras, populares. Sua escrita é como uma conversa, por isso sua leitura se mostra tão facilitada. Mas ele não faz isso de forma simples. Está sempre extrapolando o sentido das palavras e busca novas interpretações. Dessa forma, produz-se novos sentidos para palavras comumente usadas, sem abandonar o sentido anterior - mas partindo dele. Por exemplo, Freud fala sobre o "Eu", sendo exatamente isso que nós entendemos. Quando falamos Eu, essa fala produz todo um conjunto de significados, e é em cima disso que Freud trabalha. Assim, aquilo que não é "eu", é "isso". Dessa forma, Freud trabalha palavras tão coloquiais e promove novas interpretações sobre elas, produzindo o efeito desejado. E ai que está a armadilha de sua leitura.
Freud em Migururuxo.
Sabemos muito bem o que significa o "eu", quem é o "eu" que fala, dentro do seno comum. E a forma como Freud atravessa com sua interpretação esta palavra faz parecer que é só disso que ele está falando. Mas o "eu" carrega muitos outros significados, encoberto por inúmeras outras camadas. Isso é proposital, pois a proposta da psicanálise não é da diferenciação e classificação, como nas semiologias psicopatológicas, mas a generalização e universalização. A lógica cartesiana nos convida a ler Freud através de seus elementos: estudamos inconsciente, pulsão, recalque, édipo, libido, principio do prazer, etc. Essa leitura, para a psicanálise, é insuficiente. Ela ganha sentido quando se misturam, se relacionam. Para entender o "eu", é necessário jogar no caldeirão psicanalítico e observa-lo lá dentro. Não é possível simplesmente isolar o "eu" e estudar o "eu". Ao fazer isso, você retira a própria psicanálise dela mesma. No "eu" sozinho, não há psicanálise.
A PROFUNDIDADE DO INCOSCIENTE
Mais do que estar em movimento, ao colocar o inconsciente como paradigma, ele produz um transbordamento, insere um impossível, um inexistente que existe. O inconsciente não é anti-racional. Ele possui sua racionalidade própria. Por isso, é fácil entender que existe, por exemplo, um embate entre o desejo e as exigências civilizatórias presentes em "Mal-Estar da Civilização", porém a compreensão de seu funcionamento, e consequentemente as consequências deste elemento, é muito mais profunda. Por isso, Freud me parece um texto fácil de ler, e difícil de compreender.
Em comparação, temos os textos de Jacques Lacan, um dos seus principais interpretadores. Coloco que Lacan produz o efeito oposto: ele é muito difícil de ler, porém bem mais fácil de compreender. Não estou dizendo que Lacan é fácil. Mas o seu estilo propões uma leitura lógica-filosófica, porém sem abandonar a psicanálise. Que fique claro - Lacan não é filósofo ou matemático. Então toda questão do paradigma do inconsciente está presente em sua obra. Mas com todo o seu aparato teórico, Lacan propõe não uma nova teoria, mas formas novas de ler Freud. E para isso, ele se utiliza de ferramentas complexas de compreensão. Por exemplo, seus matemas. Assim, ler Lacan é difícil, pois exige do leitor uma carga mais pesada de ferramentas teóricas. Mas depois que se consegue ler Lacan, a própria leitura de Freud se torna mais simples.
Exatamente por essa característica de esquematizar a psicanálise com princípios linguísticos, filosóficos, lógicos, etc., é que a aproximação de Lacan com outros saberes se torna tão prolifera. Lacan conversa mais com essas áreas, iniciadas nos saberes que ele propõe.
Por mais que Lacan de fato não tenha escrito tanto assim (boa parte dos seus textos são transcrições dos seus seminários), o texto que ele produzia não era pra ser fácil. Lacan não "escrevia" para todos. Freud sim, pois tinha essa preocupação. Mas ambos escreveram psicanálise. E esta possui caminhos próprios a serem trilhados. Um caminho infinito. Freud nunca acabou sua obra. Lacan também não. Pois a psicanálise tem o paradigma do inconsciente - faltante, incompleto, transbordante. O paradigma psicanalítico do inconsciente é o do impossível. O paradigma cartesiano não permite compreender isso. E sem compreender isso, não se compreende a psicanálise. Apenas sua superfície. Mas psicanálise é profundidade. A profundidade do inconsciente.
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