Bezerra da Silva canta em sua música um protesto contra a repressão feita a ele. Ele se refere a liberdade de Leonardo, da qual ele deveria ter igual. Na canção, com tom humorístico, ele questiona: "Se Leonardo DaVinci, por que é que eu não posso dar dois?" O que Bezerra não sabia, era que esta liberdade de Leonardo nem sempre foi tão tranquila o quanto ele imagina em sua canção. Se hoje temos Leonardo DaVinci como um dos maiores nomes da história das artes, saiba que ele teve um grande rival, mas este não era da área das artes. Nascido no mesmo ano de DaVinci, Girolamo Savonarola foi um frei dominicano que liderou uma rebelião de caráter fundamentalista contra o governo Medici, impondo leis rígidas contra a homossexualidade, durante os períodos de 1494 à 1498.
Muito antes de constituir a Itália que conhecemos, que se torna um Estado-Nação na segunda metade do século XIX por um processo de unificação chamado Risorgimento, Florenza era dominada pelos Medici, uma família de comerciante reconhecida pelo seu papel no renascimento italiano. Sigmund Freud escreve em 1909 um texto sobre Leonardo onde aponta a homossexualidade do artista. Isso pode ser apontado por pesquisadores que mostram o cenário artístico de Florença no período. Na biografia de Leonardo DaVinci, Walter Isaacson dedica um capítulo inteiro a essa questão, mostrando como esta prática sexual vigorava na comunidade artística de Florenza. Ele ressalta:
/'L'amore masculino, como Lomazzo dizia ter ouvido Leonardo referir-se à prática, era tão comum em Florença que a palavra Florenzer acabou virando gíria para gay na Alemanha." (Isaacson apud Jorge, p. 29)
Apesar disso, a homossexualidade na época era considerada crime, podendo ser penalizado o infrator com a prisão. Por 70 anos, a partir de 1432, os "Oficiais da noite", uma milícia de jovens conservadores, patrulhava a cidade velando pela moral e os bons costumes. O próprio Leonardo, aos 24 anos, foi acusado com outros três jovens da prática de sodomia com um prostituto de dezessete anos chamado Saltarelli. O caso foi arquivado pois um dos participantes do evento fazia parte de uma família que tinha relações matrimoniais com os Medici. Apesar de muito comum, não havia a liberdade pregada por Bezerrra em sua música para Leonardo.
Savonarola foi a principal figura nesse movimento que tomou conta de Florença no final do século XV. Um dos eventos mais significativos da ação do frei foi o evento conhecido como "A fogueira das vaidades", em 1497. Nela, crianças foram convocadas para erguer uma gigantesca fogueira, onde seriam queimados livros, obras de arte, roupas, jogos de carta, instrumentos musicais, livros etc. que fossem contra os valores defendidos pelo bispo. Um exemplo foram os livros de Boccaccio, conhecido por escandalizar a sociedade com suas críticas muitas vezes direta a sociedade da época, como vemos em "Decameron", por exemplo. Vale lembrar que séculos depois vimos um evento semelhante na Alemanha nazista, onde o Freud, que dedicaria um texto à Leonardo DaVinci, considerado polêmico por defender a homossexualidade do artista italiano, também teve suas obras queimadas.
Acontece que a opinião popular acabou se voltando contra Savonarola, e em 1498, no dia 23 de maio, ele foi enforcado e teve seu corpo queimado junto com outros dois frades aliados na praça central de Florença. Um curioso caso de ironia histórica, pois ao ser conhecido por sua fogueira das vaidades, seu executor acabou sendo vencido pelo fogo de outra fogueira, esta popular. Com isso, temos o retorno em 1500 de Leonardo DaVinci a Florença, aos 50 anos, onde temos sua fase mais produtiva, exatamente no momento que a onda reacionária já havia terminado, e a cidade voltou a ser o berço das artes.
Interessante pensar que há uma semelhança na tensão entre um pensamento conservador de uma sociedade vitoriana de Viena na virada do Século XIX para o XX e a tese sexual de Freud apresentada naquela sociedade. Se Freud aponta para a potência criativa da sexualidade e sua relação com a sublimação, é sempre interessante pensar a forma como nos relacionamos com a sexualidade no contexto histórico. Bezerra da Silva achava que a vida era mais fácil para Leonardo DaVinci, mas as formas de opressão a criatividade humana se apresentam de diversas formas na nossa história.
Boa parte da reflexão acima foi retirada da referência abaixo: Marco Antonio Coutinho Jorge. FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE DE FREUD A LACAN: Volume 4 - O laboratório do Analista.
Páginas 28, 29 e 30.
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